Hilda Hilst, por algum tempo, nutriu uma grande paixão por um homem, mas nunca conseguiu tê-lo. Essa paixão platônica foi matéria para belos poemas, dos mais líricos de nossa literatura:
Essa lua enlutada, esse desassossego
A convulsão de dentro, ilharga
Dentro da solidão, corpo morrendo
Tudo isso te devo. E eram tão vastas
As coisas planejadas, navios,
Muralhas de marfim, palavras largas
Consentimento sempre. E seria dezembro.
Um cavalo de jade sob as águas
Dupla transparência, fio suspenso
Todas essas coisas na ponta dos teus dedos
E tudo se desfez no pórtico do tempo
Em lívido silêncio. Umas manhãs de vidro
Vento, a alma esvaziada, um sol que não vejo
Também isso te devo.
Em 1973, Lygia Fagundes Telles lançou seu romance mais famoso, As Meninas. Nele, a depender da lente que utilizarmos, poderemos ver um grande livro sobre a entrada na vida adulta, sobre ser uma jovem no início da década de 70, sobre viver sob a ditadura militar no Brasil dessa época, sobre os apelos a que estamos sempre vulneráveis, sobre individualidades tão distintas que cada uma tem uma linguagem própria, sobre ter a coragem de ser, sobre ter medo de ser, sobre amor, sobre paixão, sobre o inalcançável, sobre amizade… E não apenas a amizade entre Lorena, Lia e Ana Clara, mas uma amizade anterior a elas, a existente entre duas escritoras: Lygia e Hilda. As Meninas é também um tributo à amizade e uma busca de eternizar uma amiga.
Na personagem Lorena, de algum modo, Lygia depositou muito de Hilda. Se Hilda estava apaixonada por um homem casado, Lorena também estava. O amado de Lorena era o misterioso Marcus Nemesius, o M.N., que nunca aparecia em carne e osso. O apaixonado de Hilda era Julio de Mesquita Neto, antigo dono do jornal O Estado de S. Paulo.

Um ano depois, em 1974, Hilda lançou um livro com os poemas feitos como contrapeso a nunca ter tido o corpo do amado, como contrapeso a nunca ter podido realizar o desejo de tê-lo. Na dedicatória do livro, a frase reveladora:
Lygia, ao construir a personagem Lorena, deixou ali, cifrada, a identidade do amado da amiga, para que ela se reconhecesse no livro. Marcus Nemesius = Mesquita Neto.
No exemplar de As Meninas dedicado à amiga, Lygia escreveu: “Hildinha, você está aqui”.
Hilda, ao intitular seu livro, continua o diálogo íntimo entre as duas e codifica o nome do amado: Júbilo Memória Noviciado da Paixão é nada mais nada menos que Júlio de Mesquita Neto da Paixão.
Lygia batizou-o. Hilda aceitou o batismo.
Nunca mais li As Meninas ou Júbilo Memória Noviciado da Paixão sem considerar esse aspecto, o da relação entre essas duas mulheres, que dialogavam entre si através de seus escritos, e cuja amizade agora inscreve-se para sempre na história da literatura.
Ao construir Lorena e M.N., Lygia buscou homenagear a amiga e seu amor, eternizando-os em seu romance. Hilda, ao escrever seu livro de poemas e fazer sua dedicatória, reconheceu-se em Lorena e deu-nos a dor e a beleza do amor não correspondido.
Viva M.N., porque ele existe!
Ai, Nilton, ❤
Lindo isso, né, Tati?